Manifesto Mangue – Parte 1
Zero Quatro
Caranguejos com Cérebro
Mangue - O conceito
Estuário. Parte terminal de um rio ou lagoa. Porção de rio com água salobra. Em suas margens se encontram os manguezais, comunidades de plantas tropicais ou subtropicais inundadas pelos movimentos dos mares. Pela troca de matéria orgânica entre a água doce e a água salgada, os mangues estão entre os ecossistemas mais produtivos do mundo.
Estima-se que duas mil espécies de microorganismos e animais vertebrados e invertebrados estejam associados à vegetação do mangue. Os estuários fornecem áreas de desova e criação para dois terços da produção anual de pescados do mundo inteiro. Pelo menos oitenta espécies comercialmente importantes dependem dos alagadiços costeiros.
Não é por acaso que os mangues são considerados um elo básico da cadeia alimentar marinha. Apesar das muriçocas, mosquitos e mutucas, inimigos das donas-de-casa, para os cientistas os mangues são tidos como os símbolos de fertilidade, diversidade e riqueza.
Manguetown - A cidade
A planície costeira onde a cidade do Recife foi fundada, é cortada por seis rios. Após a expulsão dos holandeses, no século XVII, a (ex) cidade "maurícia" passou a crescer desordenadamente as custas do aterramento indiscriminado e da destruição dos seus manguezais.
Em contrapartida, o desvairio irresistível de uma cínica noção de "progresso", que elevou a cidade ao posto de "metrópole" do Nordeste, não tardou a revelar sua fragilidade.
Bastaram pequenas mudanças nos "ventos" da história para que os primeiros sinais de esclerose econômica se manifestassem no início dos anos 60. Nos últimos trinta anos a síndrome da estagnação, aliada à permanência do mito da "metrópole", só tem levado ao agravamento acelerado do quadro de miséria e caos urbano. O Recife detém hoje o maior índice de desemprego do país. Mais da metade dos seus habitantes moram em favelas e alagados. Segundo um instituto de estudos populacionais de Washington, é hoje a quarta pior cidade do mundo para se viver.
Mangue - A cena
Emergência! Um choque rápido, ou o Recife morre de infarto! Não é preciso ser médico pra saber que a maneira mais simples de parar o coração de um sujeito é obstruir as suas veias. O modo mais rápido também, de infartar e esvaziar a alma de uma cidade como o Recife é matar os seus rios e aterrar os seus estuários. O que fazer para não afundar na depressão crônica que paraliza os cidadãos? Como devolver o ânimo deslobotomizar e recarregar as baterias da cidade? Simples! Basta injetar um pouco da energia na lama e estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias do Recife.
Em meados de 91 começou a ser gerado e articulado em vários pontos da cidade um núcleo de pesquisa e produção de idéias pop. O objetivo é engendrar um "circuito energético", capaz de conectar as boas vibrações dos mangues com a rede mundial de circulação de conceitos pop. Imagem símbolo, uma antena parabólica enfiada na lama.
Os mangueboys e manguegirls são indivíduos interessados em: quadrinhos, TV interativa, anti-psiquiatra, Bezerra da Silva, Hip Hop, midiotia, artismo, música de rua, John Coltrane, acaso, sexo não-virtual, conflitos étnicos e todos os avanços da química aplicada no terreno da alteração e expansão da consciência.
Manifesto Mangue – Parte 2
Zero Quatro, com a colaboração de Renato L.
Quanto vale uma vida
Longa vida ao Groove
Os alquimistas estão chorando. A indignação ruidosa de Lúcio Maia com a ferocidade carniceira da imprensa nos faz lembrar que nem tudo tem que ser movido a cinismo e oportunismo no - cada vez mais - cínico e vulgar circuito pop.
Antes de mais nada, salve Lúcio, Jorge, Dengue, Gilmar, Toca, Gira e Pupilo. Salve Paulo André e longa vida ao Nação Zumbi, com seu groove imbatível, mix epidêmico e urgente de química e magia que cedo ou tarde vai varrer o mundo!
A primeira vez que vimos Chico juntando a Loustal com o Lamento Negro (o embrião do que seria a Nação Zumbi, ainda no início de 91), comentamos arrepiados, eu e Renato L. : "não importa que estejamos no fim do mundo e sem dinheiro no bolso; não tem errada, não há nada no mundo que possa deter esse som!" Na nossa ficha, constava a produção de vários programas de Rock na cidade, onde nos esforçávamos para mostrar sons novos e interessantes de todos os cantos do mundo. E não havia dúvida de que naquele momento estávamos diante de algo absurdamente novo e irresistível. Começamos imediatamente a viajar num conceito capaz de colocar o Recife no mapa. Claro que houve momentos nos últimos anos em que chegamos a pensar que talvez tivéssemos ajudado a criar uma espécie de monstro incontrolável. Mas hoje sabemos que agimos bem, não poderíamos agir de outro modo.
- E agora, mangueboys?
Chico era referência e inspiração para muita gente, talvez para toda uma geração de recifenses. E a perda para a Nação Zumbi é irreparável em termos de carisma, energia vocal, gestual, etc. Ninguém questiona isso. Mas o que muita gente esquece é que a fórmula criada por Chico tinha uma base muito sólida em termos de cozinha, acompanhamento, groove. A maioria das pessoas desconhece alguns fatos. Quando eu conheci Francisco França, ele era o lado mais extrovertido da mais nova dupla do barulho da cidade. Chico e Jorge eram inseparáveis como unha e carne, egressos da "Legião Hip Hop", que reunia no final dos anos 80, alguns dos melhores dançarinos e djs que o Recife já conheceu ( alguém aí já viu Jorge Du Peixe dançando "street"? A galera que hoje em dia ensina funk nas academias de dança não daria nem pro caldo...).
Jorge sempre foi um pouco mais tímido, mas não menos engraçado, e os dois se completavam em termos de gosto, idéias, visão e criatividade. Chico sempre teve mais iniciativa e era, como todos sabemos, um letrista formidável. Mas alguém aí se lembra quem é o autor da letra do clássico "Maracatu de Tiro Certeiro"? Isso mesmo, Jorge Du Peixe...
Quanto a Lúcio Maia, qualquer um que acompanhe a Guitar Player, sabe que é cada vez maior o número de pessoas que o consideram um dos mais talentosos e ecléticos guitarristas brasileiros, uma verdadeira revelação dos últimos tempos. Dengue, então, é aquele baixista contido, discreto, mas super-eficiente. Desde os tempos do Loustal, ele sempre conseguiu encaixar a levada perfeita para o estilo fragmentado dos versos de Chico. E quanto aos tambores e à bateria, nem é preciso comentar. Não se via, no rock and roll, uma engrenagem tão potente e envenenada desde a morte de John Bonham.
Quando toda a crítica brasileira caiu de quatro sob o impacto avassalador do "Da Lama ao Caos", houve no Recife quem apostasse que Chico despontaria em carreira solo já no segundo disco. Argumentavam que, por um lado Chico tinha luz própria de sobra e por outro a fórmula do Nação Zumbi não renderia mais nada interessante, pois já teria se esgotado. Eu e Renato torcemos para que acontecesse o contrário, para que Chico não se rendesse à vaidade pessoal e injetasse todo gás possível no fortalecimento da banda. Ele não decepcionou, mostrou que não era nem um pouco ingênuo ou deslumbrado e que sabia muito bem do que precisava para se manter no topo. O resultado foi o brilhante "Afrociberdelia", um trabalho coletivo - com Lúcio mais ativo do que nunca do que nunca na produção.
Portanto, se existe uma banda que tem total autoridade e potencial para ocupar condignamente o lugar que o inesquecível Chico Science deixou vago no topo, essa banda é sem dúvida a Nação Zumbi. Por sinal, o próprio Chico nem cogitava em dar por esgotado o formato da banda, tanto que já planejava entrar com os brothers no estúdio ainda este ano para gravar o terceiro disco. LONGA VIDA AO GROOVE!!!
Buscando respostas
"Something is happening here, but you don´t know what it is. Do you, Mr Jones?" Essa frase de Bob Dylan me vem à mente sempre que eu penso no tom de alguns comentários publicados nos maiores jornais do país a respeito da morte de Chico. Talvez com intenção de pintar o fato com as cores mais chocantes, expurgando, assim, a dor e a revolta da perda, as matérias acabavam invariavelmente emitindo um tom derrotista ou até desolador.
Se o caso é especular sobre o que pode acontecer daqui em diante, o mais oportuno seria tentar identificar na história do Pop, fatos ou situações semelhantes que possam servir de exemplos. Em se tratando de movimentos de cultura Pop; gerados em focos isolados; situados na periferia do mercado; e com reconhecimento mundial, os fenômenos mais correlatos ao Mangue Beat que se tem notícia - ainda que os estágios de desenvolvimentos sejam distintos - são a Jamaica pós-Bob Marley e Salvador pós-Tropicalismo.
Sobre Salvador, minha experiência como mangueboy me diz que o Tropicalismo não surgiu lá por acaso. Nada no mundo poderia ter impedido o caldo cultural da cidade de gerar posteriormente ( e na seqüência ) os Novos Baianos, A Cor do Som, os trios elétricos, a Axé Music, o Samba - Reggae, a Timbalada, etc.
Também não foi por milagre que a Jamaica se tornou berço do Calipso, do Ska, do Reggae, do Dub, do Raggamuffin e de todas as variantes do Dancehall que hoje, quase 20 anos depois da morte de Marley, contaminam as paradas de sucesso de todo o mundo.
Esses dois fenômenos foram condicionados por combinações específicas de fatores geográficos, econômicos, políticos, sociológicos, antropológicos, enfim, culturais, cuja história eu não seria capaz de analisar. Mas em se tratando de focos isolados que a partir de um determinado estímulo geram uma reação em cadeia capaz de contaminar toda a história futura de uma comunidade, meu depoimento talvez possa ser útil.
Uma visita muito especial
Lembro-me muito bem do nervosismo que tomou conta da cidade quando, em 93 (logo após o primeiro Abril Pro Rock), a diretoria da Sony anunciou que mandaria um representante ao Recife para contratar Chico Science... Fun! Fun! Zoeira Total! Diversão a qualquer custo, e a mais barulhenta possível! Esse havia sido o nosso lema quando, dois anos antes, sentindo o descompasso - o fundo do poço, o infarto iminente - , resolvêramos tentar de tudo para detonar adrenalina no coração deprimido da cidade. Depois de vários shows e eventos muito bem sucedidos, e do manifesto "Caranguejos com Cérebro" ( que transformou, de uma hora para outra centenas de arruaceiros inocentes em "mangueboys" militantes ), parecia que a cidade realmente começava a despertar do coma profundo em que esteve mergulhada desde o início da guerra dos 80.
Parêntese: não é exagero. Segundo os levantamentos mensais do DIEESE, Recife conseguiu manter sem muito esforço a impressionante e isolada posição de campeã nacional do desemprego e da inflação por nada menos que dez anos seguidos!!! Imaginem o efeito devastador que uma situação como essa pode provocar na alma de uma comunidade com mais de 400 anos de história e que só neste século havia gerado nomes da dimensão de Manuel Bandeira, Gilberto Freyre, Josué de Castro e João Cabral de Melo Neto. Para nós, que mal havíamos saído da adolescência só restavam duas saídas: tentar uma bolsa na Europa ou ganhar as ruas...
Então, a chegada da Sony representava uma espécie de prêmio coletivo. O significado simbólico era que finalmente podia estar se abrindo um canal de comunicação direta com o mercado mundial, como os caranguejos do asfalto haviam almejado em seu primeiro manifesto. Para todos os agentes e operadores culturais que viam seu talento e potencial atrofiados pela desmotivação, era o estímulo concreto que faltava. Afinal, queiram ou não, discos pop lançados por multinacionais movimentam várias áreas de expressão ao mesmo tempo: moda, fotografia, design, produção gráfica, vídeos, relações públicas, assessoria, imprensa, marketing, música,etc.
Daí em diante, pode-se dizer que teve início um efetivo "renascimento" recifense. Todo mundo gritou mãos à obra! e partiu para o ataque. As ruas viraram passarelas de estilistas independentes; bandas pipocaram em cada esquina; palcos foram improvisados em todos os bares; fitas demo e clipes novos eram lançados toda semana, e assim por diante, gerando uma verdadeira cooperativa multimídia autônoma e explosiva, que não parava de crescer e mobilizar toda a cidade. De headbangers a mauricinhos, de punks a líderes comunitários, de surfistas a professores acadêmicos, ninguém ficou de fora. Para se ter uma idéia, a frase " computadores fazem arte, artistas fazem dinheiro" ( Mundo Livre SA ) virou tema de redação de vestibular de uma faculdade local.
Manguetown, 5 anos depois
O renascimento segue de vento em popa. A noite mais concorrida do último Abril Pro Rock foi a que reuniu três bandas locais. Mais de cinco mil pessoas pagaram ingresso e enfrentaram uma chuva intensa para aplaudir e cantar junto com Mundo Livre SA, Mestre Ambrósio e Chico Science e Nação Zumbi. O festival "Viva a Música", realizado em setembro passado, reuniu mais de 50 novas bandas. O disco de estréia da campeã, Dona Margarida Pereira e os Fulanos, está em fase de gravação. O programa Mangue Beat (Caetés FM 99.1) ocupa há 2 anos os primeiros lugares de audiência, tocando fitas demo e lançamentos locais, além de novidades de todos os cantos do planeta. O "Manguetronic", um programa de rádio idealizado especialmente para a Internet, vem se firmando como um dos sites mais acessados do Universo on Line. Os últimos cds do Chico Science e Nação Zumbi e do Mundo Livre SA e a estréia do Mestre Ambrósio figuraram na lista dos dez melhores do ano da revista Showbizz. Estão em fase de finalização os aguardados álbuns de estréia das bandas Eddie e Devotos do Ódio. O Abril pro Rock 97 entrou pela primeira vez no calendário de eventos oficiais do Estado, ganhando assim uma ampla divulgação nacional e uma infra-estrutura mais organizada. A estréia em longa-metragem dos cineastas pernambucanos Lírio Ferreira e Paulo Caldas - o filme "O Baile Perfumado", cuja trilha é assinada por Chico Science, Siba (do Mestre Ambrósio) e Zero Quatro - ganhou vários prêmios, entre eles o de melhor filme, no último Festival de Cinema de Brasília. O estilista Eduardo Ferreira já recebeu vários prêmios nas últimas edições do Phytoervas Fashion. O Mundo Livre S.A. acaba de fazer 4 shows e um clipe no México, devendo participar de vários festivais europeus no segundo semestre...
(Pausa para respirar)
Temos como objetivo imediato pressionar a Prefeitura do Recife para tirar do papel e colocar no ar a rádio Frei Caneca FM, uma emissora sem fins lucrativos cujo orçamento para 97, ao que parece, já foi aprovado pela C’mara Municipal. Afinal, o único e mais difícil obstáculo que ainda não superamos foi o das rádios comerciais. Sabemos que na Jamaica e em Salvador foi preciso o uso até de ações violentas para pressionar os disc - jóckeis. No estágio atual, não achamos que recursos sejam necessários. O Popspace não é invulnerável e a história está do nosso lado.
Quem acompanhou no Recife as últimas homenagens a Chico, sentiu a força de um compromisso coletivo. Hoje cada recifense tem no olhar um pouco de guerrilheiro da Frente Pop de Libertação. E o recado que queremos enviar para o mundo não é muito diferente daquele que nos mandam as comunidades indígenas de Chiapas- que têm no subcomandante Marcos o seu porta-voz. VIVA SANDINO! VIVA ZAPATA! VIVA ZUMBI! A utopia continua...
"- Quanto vale a vida de um homem, em quanto cada um avalia a sua própria vida, a troco de quê está disposto a mudá-la? Nós avaliamos muito alto o preço de nossas vidas. Valem um mundo melhor, nada menos. Homens e mulheres, dispostos a dar suas vidas, têm direito a pedir tanto quanto valem. Há os que avaliam suas vidas por uma quantidade de dinheiro, mas nós a avaliamos pelo mundo, esse é o custo do nosso sangue..." (Subcomandante Marcos)